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abril 23, 2009

Gente de Anadia

O VELHO CAVALO QUE VOLTA À CORRIDA
por
FERNANDA CÂNCIO 07 Março 2009

Vital Moreira. Diz-se 'freelancer': do PS como, assegura, foi do PCP onde chegou a desafiar Cunhal a abandonar a direcção antes de sair ele próprio, em 1990. Jurista, político e opinador, mantém quase secretas as suas outras vidas: o amor da fotografia, da literatura e da música e, dizem amigos, do vinho
Brilhante, arrogante, distante. E o resto? "Uma armadura", diz um amigo
"Ele não tem nada a ganhar, só tem a perder". A apreciação sobre o cabeça de lista do PS às eleições europeias vem de José Miguel Júdice, do outro lado da barricada ideológica coimbrã dos anos 60, quando a academia se ergueu contra o regime. "Não só porque é evidente que o ordenado de um mês como eurodeputado ele ganhava num só parecer, como porque vai ser enxovalhado. É o que sucede a quem se mete na política. Podia estar tranquilamente a ganhar dinheiro e a ter fins de semana e vai para aquilo... Fiquei surpreendido. Coloco-me no lugar dele, se alguém me convidasse eu não aceitava. É um acto de grande generosidade."
Apesar de se terem conhecido "no meio de polémicas violentíssimas", é alguém que Júdice garante "respeitar muito". "Eu era o líder da direita estudantil e ele era um dos líderes da esquerda. Estávamos de relações cortadas e fui trabalhar com ele na cadeira de Direito Corporativo - curioso, que o regime permitisse a um comunista ser regente de uma cadeira daquelas - sem nos falarmos." Vital, que só se filiaria no PCP em 1974, havia de ser expulso da Universidade em 1969, era já assistente, pelo então ministro da Educação José Hermano Saraiva, e reintegrado por Veiga Simão um ano depois, graças ao concurso de Afonso Queiró, director da faculdade e destacado líder da Acção Nacional Popular (o partido do regime) a quem agradece a carreira académica. Júdice saiu de Coimbra depois de 1974 ("Senti que fui lá maltratado") e não voltaram encontrar-se senão muitos anos depois, quando o advogado e empresário tinha já "feito o hotel da Quinta das Lágrimas". "Tão bonito o que fizeste", disse-me ele, "É tão bom passear lá com o vento a bater nos canaviais". Não ficaram propriamente amigos, mas há afecto na voz do advogado. "É uma pessoa muito sincera, com o coração ao pé da boca. E tem uma grande qualidade que também creio ter - o de não ter medo de ir à luta por aquilo em que acredita. Deixou o PCP, por exemplo, que é uma coisa terrível, sucedeu com o meu pai, o nome nunca mais é pronunciado... E é um homem muito emocional."
Muito emocional, Vital Moreira? Dir-se-ia o contrário. A imagem é a de um sobranceiro professor, de resposta sibilina e ironia subtil, o rosto fixado num semi sorriso. Arrogante, vaidoso, de uma insuportável presunção de sapiência, dizem os menos apreciadores, frio e distante, dizem os menos próximos. Não simpático, decerto, mesmo se todos, mesmo os supostos inimigos, lhe reconhecem o brilho: fantástico orador, com a "necessária demagogia", como aquilata Júdice, ouviu e leu muitas vezes de si, nos tempos de deputado do PCP: "Que pena ser comunista".
O deputado do PS Osvaldo Castro, amigo muito próximo que o conhece desde os tempos do PCP e o acompanhou na dissidência, di-lo "ensimesmado", alguém que "se esconde um pouco" e cuja exposição pública, por exemplo no programa da TVI24, onde só participou num debate, "tem de ser arrancada a ferros". Albano da Silva Pereira, director dos Encontros de Fotografia de Coimbra e notório bon vivant, vê-lhe "uma armadura". A armadura que guarda do público o outro Vital. Por exemplo "o amante da fotografia", que chegou a ter (ainda terá?) um laboratório em casa e que desde os anos 80, quando Albano o conheceu, se aperfeiçoou numa arte cujo amor terá "apanhado" do irmão da actual mulher, Maria Manuel Leitão Marques. "O António Leitão Marques, irmão da Maria Manuel, médico aqui de Coimbra, já fazia fotografia. Creio que foi com ele que a coisa começou." Vital, que costuma postar fotos suas no blogue Causa Nossa (causa-nossa.blogspot.com) - que criou em 2003 com Ana Gomes, Vicente Jorge Silva, Luís Nazaré, Luís Osório e Maria Manuel como prolongamento de uma tertúlia que reunia em jantares no restaurante Casa Nostra - sob o título "lugares de encanto" já expôs no Centro, numa colectiva. "Creio que eram fotos de Angola, a preto e branco. Ele trabalha muito as coisas, estuda muito. É um perfeccionista na fotografia como em tudo. Há nisso uma certa rigidez que tem a ver com a linha ortodoxa, cristalizada, da militância comunista. Pelo menos é o que eu acho."
Quase insuspeito este Vital, que só em perfis - poucos - do final dos anos 80 assumiu a paixão pela fotografia, que escreveu um livro sobre a paisagem na obra do romancista e poeta Carlos de Oliveira (Paisagem povoada: a Gândara na obra de Carlos de Oliveira, 2003) , que fez a sua tese de doutoramento, em 1996, sobre a casa do vinho do Porto (e que os amigos garantem um grande apreciador de vinho, sobretudo da Bairrada, e do leitão da mesma zona - a sua) e cujo fascínio por Shakespeare e pelos clássicos anglo-saxónicos o fez decidir, no fim do liceu, seguir Germânicas. O Vital que, ao avesso da caracterização monolítica, foi capaz de mudar de ideias e se inscrever em Direito por causa de uma conversa. "Sou um jurista acidental. Estava na fila de inscrição na faculdade, em Setembro de 1962, e ao meu lado estava o Manuel Alberto Valente (hoje na Porto Editora). Começámos a falar, e como não fomos atendidos nesse dia fomos jantar e acabámos por arranjar um quarto para ficar. E ele convenceu-me a ir para Direito. Comecei a estudar literatura inglesa mas acabei jurista..." Seria o outro que não faria Direito: ele acabaria um dos mais notáveis juristas portugueses. Sorri. "Os acasos acertam."
Ou isso ou um penchant pelo jogo, pelos instantes decisivos. Capaz de arriscar tudo num momento mas também de mandar tudo ao ar pelas suas convicções - como quando após a revisão constitucional de 1982, não se revendo nas opções do partido, largou o lugar de deputado comunista e voltou à academia, para ser pouco depois escolhido para o elenco do Tribunal Constitucional. Como quando desafiou Cunhal abandonar a direcção do partido, em 1990 ou, asseveram os amigos Osvaldo e Raimundo Narciso (outro dissidente), "dirigiu" as dissidências dos anos oitenta e noventa, incluindo a de Zita Seabra, em 1988 ("A Zita era uma criatura dele. Enquanto no PCP e na saída"). Como quando na revisão constitucional de 1997, convidado por Guterres para dirigir os trabalhos da bancada socialista (tinha sido o primeiro suplente por Coimbra às legislativas de 1995) mas sentindo que o processo não estava a ser transparente, mandou o PS às urtigas, para romper definitivamente com a direcção guterrista devido à sua posição no aborto e dizer hoje "o guterrismo foi um grande falhanço com pequenas excepções".
"Sou como o jogador de xadrez que não consegue estar diante do tabuleiro: ou joga ou vai-se embora! Eu joguei". A frase tem 29 anos mas encaixa no momento em que o autodenominado freelancer aceitou o convite para cabeça de lista do PS às europeias. "Foi-me apresentado um argumento convincente: o de deixar de passar de treinador de bancada para o campo." A decisão, tomada menos de um dia antes do anúncio, foi segredo até ao fim. Osvaldo Castro esperava outro nome e até saiu do congresso mais cedo. "Tinha um jantar no Porto, deram-me a notícia pelo telefone."
A frase é, pois, antiga - de um homem então com 37 anos, franja densa como hoje (então escura) e grandes óculos de massa, nascido em 1944 em Vilarinho do Bairro, Anadia, um de três filhos de uma agricultora "que acabaria doméstica" e de um comerciante ambulante. O homem que confessa ter sentido muito tempo "falta de atracção pela política concreta", realizando-se naquilo que chama "acção política intelectual", inciada nos anos 60 como colaborador da revista Vértice; que recusou dois convites para o Comité Central do PCP mas aceitou ser cabeça de lista por Aveiro às legislativas, fazendo campanha sozinho, de megafone no seu carro, e arrebatando o primeiro lugar para o PC no distrito ("um one man show", diz). O homem que o 25 de Abril surpreendeu em Londres, a fazer o doutoramento (só terminado 22 anos depois) e que diz não fazer normalmente inimizades políticas por "nunca atacar as pessoas, mas sim as ideias"; que acumulou funções de grande dignidade jurídica (desde a direcção de um mestrado em Direitos Humanos, em Veneza, à integração numa comissão de peritos independentes para a Carta dos Direitos Fundamentais daUE) e dá aulas em várias universidades, mas recusa usar as insígnias dos catedráticos, os chamados " capelo e borla" por as achar "ultrapassadas e ridículas" - e a quem o amigo Osvaldo pergunta: "Vale a pena andares nessa guerra?"
Vital Martins Moreira, 64 anos, acha que sim. Essa, a do capelo e borla, e muitas outras. O velho cavalo, como se apelidou em 1982 no regresso ao parlamento, voltou à corrida. Veremos se, como na altura ajuizou, dará de novo "boa conta de si".

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