Textos relacionados com os 'posts' do Ponte da Pedra

março 15, 2005

A Chegada da Malaposta (ao Porto)


Mala-Posta de Lisboa a Coimbra, 1798.
(Reconstituição a óleo por J. Pedro Roque, 1968) Posted by Hello

A Chegada da Malaposta
Por JOSÉ MANUEL LOPES CORDEIRO, Domingo, 10 de Outubro de 1999

A inexistência de estradas capazes de garantir a regular comunicação entre as principais localidades do país constituiu um problema que só a partir de meados do século XIX começou a ser solucionado. A ligação por estrada entre as duas principais cidades, por exemplo, era ainda no final do primeiro quartel de Oitocentos um objectivo a alcançar. No século XVIII tinha-se iniciado a construção, a partir de Lisboa, da ligação entre estes dois centros urbanos, a qual, contudo, acabou por se quedar por Coimbra. Não obstante várias tentativas para alcançar o Porto, esse objectivo acabou por não ser concretizado, continuando-se a utilizar a antiga via - alvo de reparações constantes -, o que tornava a viagem longa, incómoda e onerosa.
Em 1835, após a vitória definitiva do liberalismo, foi projectada uma nova estrada que estabelecesse a ligação entre a capital e a Cidade Invicta e, finalmente, dois anos mais tarde, é celebrado o contrato para a construção da ambicionada via, assim como das correspondentes obras de arte, adoptando, sempre que conveniente, o então revolucionário método do engenheiro escocês John MacAdam para a construção de estradas, divulgado em 1820. Entre as obras de arte incluídas no contrato constava uma ponte sobre o Douro - a construir segundo o sistema de suspensão - a ponte pênsil.
Apesar das obras de construção da principal estrada do Reino avançarem com alguma regularidade, e da ponte pênsil ter sido aberta ao trânsito em 7 de Janeiro de 1843, foi necessário aguardar pela segunda metade do século XIX para que a nova estrada Lisboa-Porto fosse, definitivamente, uma realidade.
Para além de se procurar resolver o problema da ligação por estrada entre as duas principais cidades do país, um dos objectivos igualmente subjacentes à sua construção dizia respeito à possibilidade de se estabelecer o sistema de comunicações postais, tanto mais que Portugal vinha tomando importantes decisões nesta matéria: em 1844, celebrara uma Convenção Postal com a França; em 1852, tinha introduzido uma reforma postal que alterou profundamente a organização dos Serviços de Correios; e, em 1853, adoptara o selo postal adesivo. Impunha-se, portanto, garantir o funcionamento de um serviço de transporte regular de correio e, obviamente, de passageiros, então vulgarmente conhecido por Mala-Posta.
Importa sublinhar que, naquela época, a Mala-Posta portuguesa não constituía propriamente uma novidade. Embora com algum atraso relativamente a outros países europeus, tinha sido introduzida em Portugal nos finais do século XVIII, mais propriamente em 1798. Contudo, em especial nos seus primeiros anos de funcionamento, registou uma existência muito atribulada, com inúmeras interrupções, as quais também se deveram à instabilidade política por que o país passou ao longo da primeira metade do século XIX. Se exceptuarmos o curto período de 1798 a 1804, que correspondeu à primeira experiência da Mala-Posta entre Lisboa e Coimbra, praticamente só entre 1852 e 1871 - quando desapareceu o serviço da Mala-Posta, definitivamente substituído pelo caminho-de-ferro -, é que se pode afirmar, com propriedade, a existência entre nós daquele serviço de transporte regular de correio e de passageiros.
Em 1852, com a estrada Lisboa-Porto finalmente passível de ser utilizada sem grandes problemas - ainda em 1842, já com a nova estrada em construção, existiam troços "aonde a água chegava à barriga das cavalgaduras, por espaço de muitas braças" (uma braça correspondia a 2,2 metros) -, foi possível iniciar o serviço de Mala-Posta entre as duas principais cidades do Reino. Inicia-se assim, em 1855, a carreira da Mala-Posta entre Lisboa e o Porto, a única cuja exploração proporcionou, de facto, resultados proveitosos do ponto de vista económico.
No entanto, perante a incerteza do investimento, o concurso para a exploração de carreiras diárias em diligência, aberto em 1855, ficou deserto - na realidade, chegaram a apresentar-se dois concorrentes, mas, por motivos que não foi possível apurar, não lhes foi concedido o alvará - , tendo sido o Estado a encarregar-se do reatamento da exploração da carreira, inaugurando-se, em 21 de Maio daquele ano, o novo serviço de Mala-Posta, entre o Carregado e Coimbra. O correio e os passageiros saíam de barco de Lisboa, subindo o Tejo até ao Carregado, onde tomavam a diligência com destino à cidade do Mondego. Porém, no ano seguinte, este troço inicial até ao Carregado passou a ser efectuado de comboio, em virtude da inauguração do caminho-de-ferro ocorrida nesse ano de 1856. O trajecto entre Lisboa e Coimbra, de cerca de 180 quilómetros, efectuado em imponentes veículos de quatro cavalos, era então percorrido em aproximadamente 23 horas, ou seja, com a estonteante velocidade média de 7,8 quilómetros por hora.
No entanto, a ligação ao Porto continuava a constituir um problema, e a data inicialmente prevista (1856) era sucessivamente adiada. Refira-se, a propósito, que as diligências da Mala-Posta eram construídas em Inglaterra e dispunham de sete lugares, quatro no interior, correspondentes à 1ª classe, e três no exterior, consagrados à 2ª classe. Ao longo do percurso até Coimbra, paravam em 14 estações de muda - onde procediam a uma rápida troca de cavalos durante cerca de, mais ou menos, dez minutos, embora nas Caldas da Rainha e Leiria as paragens fossem mais demoradas, a fim de os viajantes poderem tomar breves refeições.
Durante a viagem, os cocheiros e os sotas - a parelha da frente - eram também substituídos em determinadas partes do percurso. O postilhão - o empregado dos Correios que acompanhava os cavalos da Mala-Posta - era o único que efectuava toda a viagem, cabendo-lhe a responsabilidade de zelar pela segurança do correio. Com a crescente procura do serviço da Mala-Posta e, consequentemente, com o aumento do número dos passageiros, foi necessário adquirir novas carruagens, de 12 lugares, mais o condutor, construídas na Carrosserie du Chemin Vert, em Paris.
A partir de 1857, ultimam-se as obras do troço da estrada entre Coimbra e Porto e, em 1859, a Mala-Posta passa a servir também a Cidade Invicta, mais propriamente o Alto da Bandeira, em Vila Nova de Gaia, onde se estabeleceu a estação "terminus" da carreira. A viagem era efectuada de uma forma ininterrupta, descontando as já referidas paragens nas estações de muda - agora em número de 23 - para troca de cavalos, descanso do pessoal e tomada de refeições, num total de 34 horas para vencer os cerca de 300 quilómetros que então separavam Lisboa da capital do Norte, aumentando a velocidade média para uns fulgurantes 8,8 quilómetros por hora.
O acontecimento foi efusivamente saudado pela população nortenha, embora também se ouvissem algumas vozes mais comedidas, como se constata na leitura de "O Comércio do Porto" de 17 de Maio de 1859, quando refere: "Chegou ontem finalmente a Mala-Posta ao Alto da Bandeira e partiu de tarde levando quatro passageiros. Consta-nos que percorrera toda a estrada desde o Pinheiro da Bemposta até àquele sítio sem o menor inconveniente. Gozamos pois de mais este melhoramento. Agora poder-se-á fazer a viagem entre Lisboa e o Porto sem interrupção e com a maior comodidade. É preciso, porém, que a estação seja no Porto e não no Alto da Bandeira e para isso não se deve deixar de empregar toda a actividade, para que no menor espaço de tempo possível se consiga a conclusão da estrada até à ponte pênsil", desiderato que só foi alcançado em 16 de Outubro de 1861.
Entre 1859 e 1864 - quando o caminho-de-ferro chegou às Devesas - a Mala-Posta serviu o Correio e os passageiros sem grandes problemas, embora os viajantes mais endinheirados preferissem efectuar a viagem servindo-se de um outro meio de transporte, o barco a vapor. Apesar destas "conquistas da civilização" nos parecerem hoje irrisórias, para a época constituíram um significativo melhoramento, que só o caminho-de-ferro, um pouco mais tarde, veio ultrapassar. Como sublinhou Fontes Pereira de Melo, num discurso em 18 de Janeiro de 1875, "acima do cavalo da diligência está o trâmuei, acima deste a locomotiva e acima de tudo o progresso".

março 04, 2005

A história da Ópera


Letra e Música de Chico Buarque, 1979 Posted by Hello

A história da Ópera
Mas como resistiu ao tempo esta elegia a uma boémia carioca perdida, misturada com uma mensagem política em tempos de ditadura? CharlesMöeller , o encenador-prodígio do momento, disse à VISÃO que deu «uma enxugada» no texto, com a aprovação de Chico: «Quando o musical estreou, vivia-se uma ditadura.
O texto e as canções tinham muito cheiro de entrelinhas, de intervenção. Sentia-se muito o peso de Brecht , os microfones junto ao palco, os actores a interromperem a acção para cantarem... O que eu fiz tem mais a ver com a tradição do musical americano, onde as canções comentam ou fazem avançar a acção.» Realmente, os tempos eram outros: Chico já tinha sentido o peso da censura aquando da estreia da peça musical Calabar – O Elogio da Traição. Estava-se em 1973, no auge da ditadura militar brasileira, e o regime tudo fez para adiar ou anular a sua estreia. O 25 de Abril em Portugal tornou as coisas ainda mais complicadas, e Calabar (que incluía canções como Bárbara ou Ana de Amesterdão) apenas estreou em 1977. Com a Ópera do Malandro, o episódio repetiu-se, com a censura a proibir a versão original da canção
O Meu Amor, por ter a palavra «sexo» num dos versos – Chico foi obrigado a substituí-la por «ventre». Mas a produção foi em frente, e logo nessa altura conheceu um êxito desmedido: inspirada na Ópera dos Três Vinténs, de Brecht e KurtWeill , e na Ópera do Mendigo, do autor inglês do século XVIII JohnGay , o elenco original contava com Marieta Severo, então casada com Chico Buarque , e Tânia Alves, para além de uma jovem actriz e cantora chamada Elba Ramalho. Logo no ano da sua estreia conquistou o prémio Molière para o melhor espectáculo. Um ano depois surge o álbum duplo com a banda sonora, que contém excelentes interpretações de ZiziPossi , MPB4, Elba Ramalho, Moreira da Silva e do próprio Chico Buarque . Em 1986, surge o filme de Ruy Guerra, com EdsonCellulari no papel principal e com novas canções do autor. A Ópera do Malandro teve ainda outras encenações, incluindo uma bizarra adaptação de Gabriel Villela , em 2000, que trouxe elementos do faroeste americano para a Lapa carioca dos anos 40.
Em Portugal, o libreto completo da Ópera foi publicado logo em 1981 (a edição original é de 1978) pelas Edições O Jornal, com um longo e precioso prefácio do maestro João de Freitas Branco.

Dupla de perfeccionistas
O enredo do musical é simples, como convém: Max Overseas (interpretado nesta produção por Alexandre Schumacher ) é o arquétipo do antigo malandro carioca: um pequeno marginal, mulherengo e contrabandista, que vive um amor proibido com Teresinha, filha de um dono de bordel, e se vê encurralado por um casamento forçado. Toda a acção se situa no bairro boémio da Lapa, entre prostitutas e demais personagens de vida duvidosa. Pelo meio, surgem figuras inesquecíveis como a de Geni .
O encenador quis reforçar esse hino a um mundo perdido, onde havia inocência e romantismo: «A boémia perdeu-se.
O malandro foi assassinado culturalmente pela violência mundial, que passa pelas guerras, a Internet ou as multinacionais. Não existe já esse mulherengo marginal que faz toda a gente feliz.»
O actor Alexandre Schumacher concorda: «Já não existe essa poesia do malandro, a não ser na música, no samba. O malandro, hoje, é mais estético do que outra coisa, porque os verdadeiros marginais dedicam-se ao tráfico e ao assassínio», disse à VISÃO. Então o que move o Max Overseas de 2005? «Desejo», responde prontamente Schumacher , «desejo e nada mais. Acaba por ser, aliás, o seu próprio calvário, porque a sua gula de desejo vai aumentando.» CharlesMöeller vai mais longe: «A Ópera, vista nos dias de hoje, tem a ver com o poder e com a guerra pelo poder, e como toda a gente se transforma quando lá chega. Há uma gravura de Escher em que um tubarão está a comer uma sardinha, que por sua vez come outro peixe e por aí fora, sem fim. É assim que eu vejo este texto: uma luta em que o mais fraco exerce o poder sobre o ainda mais fraco.»
Quem tenha assistido à versão de 1978 vai ficar surpreendido com o que é, agora, uma megaprodução . O que era antes uma estética da pobreza brechtiana constitui, agora, uma encenação digna de qualquer palco da Broadway . Alguns factos e números, só para impressionar: três palcos giratórios, uma orquestra de 12 músicos que toca ao vivo, um equipa de cerca de 70 elementos e 75 figurinos especialmente concebidos para este espectáculo. A dupla Möeller e Botelho – que literalmente revitalizaram o musical brasileiro, assinando êxitos de bilheteira como Cole Porter , Ele Nunca Disse Que Me Amava (2000) – é perfeccionista e por isso não é de espantar que tenham sido gastos quase 800 metros de tecidos para os figurinos, de crepes a veludos, passando por linho e cetim. Todas as peças foram recriadas rigorosamente à maneira dos anos 40. Os dois auto-intitulados « buarquemaníacos » escolheram judiciosamente o elenco, baseados na excelência das vozes e na capacidade de representação. É essa extraordinária harmonia que faz a diferença ao longo das 20 canções que o espectáculo contém. Infelizmente para nós, um membro do elenco original não pode vir a Portugal por razões de trabalho: é Lucinha Lins, que os portugueses conhecem bem das novelas e que dava voz e vida a Vitória, mãe de Terezinha . Para os que quiserem prolongar o palco até casa, existe já o CD da banda sonora desta produção.

Um homem feliz
No meio de tudo isto, Chico Buarque é um homem feliz. Möeller e Botelho tiveram a aprovação total do autor para esta versão, e até mais: «O Chico, hoje, é aquele tipo meio recluso, que raramente sai. Mas ele foi a um ensaio e adorou», conta o encenador. «No final estava muito emocionado, chegou mesmo a chorar. Não veio à estreia, mas veio depois e esteve com o elenco antes e depois do espectáculo. Veio ao camarim antes de começar e rezou connosco, foi incrível!» O único pedido que Chico fez foi o da utilização da versão original de O Meu Amor, o que naturalmente foi atendido. O resultado foi o que já aqui se relatou e que agora nos preparamos para confirmar. Percebe-se que o espectáculo só pode ser um sucesso quando se ouve a emoção na voz de Möeller : «Eu nunca pensei que viria a dirigir a Ópera do Malandro. Já me posso aposentar.»

© Copyright VISÃO / Edição nº 624