Diário Notícias 04-02-2008 Página(s): 1/4/5
A conversa que marcou a queda do ministro da Saúde O DN descobriu na Anadia que o movimento que ditou a substituição do ministro da Saúde, Correia de Campos, começou numa conversa de café entre amigos. Uma grande reportagem sobre o outro lado da remodelação do Governo. Urgências. A substituição de Correia de Campos na pasta da Saúde é vista como uma oportunidade em Anadia para que as urgências voltem a abrir. E a cidade tem feito por isso, com um recorde de 15 manifestações. O DN foi conhecer as caras por detrás dos protestos que têm alimentado as notícias Que força é essa que nasceu em Anadia? Anadia no centro da contestação com 15 protestos Rute Araújo (Texto) RODRIGO CABRITA (Fotos) "Querem acabar com a urgência. Então e nós não fazemos nada?" No momento em que as palavras lhe saíram da boca, de rajada entre dois golos de café, nem Telma Soares acreditava que ela e José Paixão pudessem fazer tanto. E que, um ano depois, Anadia, cidade pequena no eixo do leitão, pouco habituada a ser notícia fora dos jornais da terra, se tornaria no epicentro da contestação à política de saúde. Tanto fizeram e abanaram que, um dia, o ministro caiu. Naquele exacto momento, quando o fecho das urgências era um plano feito por médicos ainda à espera da decisão política, Telma e José resolveram que não iriam perder a guerra, não sem pelo menos ir à luta. O "Movimento Unidos pela Saúde" tem inscrito no BI a data e o local de nascimento. 20 de Fevereiro de 2007, Bar Camelo, na Curia. Veio ao mundo de uma conversa de café entre Telma Soares e José Paixão, cada um "solteiro e os dois "só amigos". Foi ela que o baptizou, apesar de não haver maneira de a imprensa acertar com o nome. Ele é sindicalista da metalurgia e militante do PCP. Ela trabalha numa óptica e nunca votou, porque nem as lentes que vende na loja a fazem olhar para os políticos com outros olhos. Ele tem a desenvoltura das lutas de trabalhadores que se prolongam pela noite, em acesos plenários até às três da manhã. Ela tem aquela força das pessoas que aos seis meses já se punham de pé. Os meses a passarem, as notícias sobre os encerramentos a multiplicarem-se, as ideias a explodir nas cabeças de Telma e José Paixão. Ó Telma, e se plantássemos uma cruz em cada rotunda de Anadia? "Quando dou uma ideia e ela se ri, é porque é boa, está aprovada". O riso de Telma, que surge à vez com o de José Paixão, tem sido a medida de todas as coisas. E não é difícil fazer a Telma rir com todas as sardas, esfregar as mãos e dizer " bom lá". Por isso, são onze da noite e lá andam eles a plantar cruzes, com a ajuda do tio Soares que assa leitões e do Fernandito que trabalha na junta. "Tem sido todos os dias, depois do trabalho... Falar com pessoas, arranjar contactos. Não sei quanto dinheiro já gastámos. Só com os balões foram 300 euros. Mas tem sido muito divertido. Quer dizer... é uma coisa muito séria. Mas é muito divertido, só o prazer de chatear o ministro. Quer dizer... mas é uma coisa muito séria". O Fernandito, que trabalha na junta e tem ajudado sempre que pode, conhece alguém na polícia e todos os outros presidentes das juntas. Não são precisos mais que três passos na cadeia de relações para chegar ao presidente da câmara. Mas, em Anadia, quem é que não se conhece? O presidente Litério Marques, também sabe quem é José Paixão. No início, a cara do movimento queria ficar na sombra, que o presidente era bem capaz de boicotar uma coisa na mão de comunistas. Bem dito, bem feito. A primeira manifestação embateu de frente na vontade do autarca, a quem não interessava o barulho, porque corriam ainda as negociações com Correia de Campos. Mas falhado o protocolo, a mesma causa juntou duas vontades, a do comunista José Paixão e a do socialdemocrata Litério Marques. "Ele não tem nada a ver com isto. Apoianos, mas não se mete." Que fique esclarecido, porque a Telma não anda para aqui a ter ideias, umas atrás das outras, para o presidente da câmara ficar com os louros. O Fernandito, que trabalha na junta, está sempre preocupado e vai controlando o curso dos protestos, não vá o Paixão ter uma ideia maluca e a Telma rir-se. A adrenalina da primeira manifestação - "e se aquilo corre mal, pode dar para o torto, tanta gente junta, com os ânimos exaltados..." -, um fardo de palha deixado à porta da Administração Regional de Saúde do Centro, um cemitério baptizado de Hospital Correia de Campos, nuvens de balões pretos e brancos nos céus de Anadia. E as televisões a fazerem directos, os partidos a juntarem-se aos protestos. Dois dias passaram e Telma ainda não sente os dedos de tanto encher balões - "também, pudera... das dez da manhã às quatro da tarde". Além dos dedos, as pernas também se ressentem dos quilómetros de carro pelas aldeias, com o altifalante a passar a mensagem para quem queria e não queria ouvir. Não foram precisos os altifalantes para que a mensagem da revolta popular chegasse ao edifício a brilhar de renovado dos paços do concelho, onde governa Litério Marques, um autarca do PSD rural que sabe falar ao ouvido do povo. Em Anadia, difícil é encontrar pessoas que não trabalhem ou tenham trabalhado na câmara. São de lá os quatro bombeiros remunerados que ajudam a manter o socorro 24 horas por dia na corporação de voluntários. É de lá o arquitecto que desenhou o projecto do novo edifício, moderno e pintado a cores num cartaz em destaque à entrada do quartel. Anda tudo ligado e, em Anadia, tudo é perto de tudo. Dos bombeiros vê-se o hospital, do centro de saúde vê-se o cemitério Correia de Campos, do hospital vê-se a cidade toda. O que existe, está ali à mão. Mas desde 2 de Janeiro, as urgências emigraram para Coimbra e já não se vêem de lado nenhum. As placas azuis à saída das rotundas a dizer "urgências" foram substituídas por outras a indicar "centro de saúde". E as pessoas ficaram baralhadas, dão mais duas voltas e sentem que a rotunda perdeu uma direcção e elas uma saída. Só pode ser engano, centro de saúde já Anadia tinha, e não é para ali. Funciona no edifício umas ruas abaixo, onde se chega às 05.00 ou às 06.00 da madrugadas de geada para arranjar vez para o doutor. "Então se estou doente, venho para aqui ao frio, ficar mais doente ainda?" Para os habitantes de Anadia, o nome urgência confunde-se com o de saúde. E o mais importante, toda a gente sabe, é ter saúde. Por isso, o que não tem preço não se troca. Nem por uma consulta aberta, "só para tapar os olhos", nem uma viatura do INEM estacionada à porta, "agora as pessoas são atendidas no meio da estrada?", nem pela promessa de outros serviços no hospital. Não lhes vendam gato por lebre, que a terra é de leitões. Assim pensam, convictos, os habitantes que têm alimentado as manifestações. Por mais que o ministro Correia de Campos tivesse dito e redito na televisão que é o melhor, que em Coimbra as condições são outras, que é só meia hora de caminho, não há quem lhes tire da cabeça que foram "roubados". As últimas semanas têm formado dentro de cada anadiense um especialista em saúde. Quem é que hoje não sabe o que é um desfibrilhador, um SUB ou uma VMER? A Telma sabe de certeza. "No outro dia aprendi quais são os sintomas de uma AVC a ouvir o ministro". "Exactamente. Então é mesmo quando ele começa a falar que eu fico com os sintomas", atira José Paixão. Correia de Campos era a encarnação de todos os males da saúde do concelho, e já tinha lugar marcado no cortejo de carnaval de Anadia. Telma até sonha com ele de tantas voltas à cabeça as urgências lhe têm dado. Agora, a reforma mudou de rosto, mas os protestos vão continuar. "Não é pela queda do ministro que lutamos, é pela reabertura dás urgências. Enquanto elas não abrirem, a luta continua", promete José Paixão. O assunto está entranhado por toda a cidade. Mais do que uma preocupação, o fecho das urgências tornou-se uma piada que ultrapassa as dos Gatos Fedorentos no top mais das mais repetidas. Se uma garrafa cai ao chão num café, logo alguém lembra que, sem urgência na cidade, o melhor é ter cuidado com os vidros. Se a entrada está escorregadia do detergente de lavanda e pinho, é de evitar as quedas, não vá um pé .torcido acabar em seis horas passadas na sala de espera dos Hospitais da Universidade de Coimbra. "No início ninguém queria fazer nada. Mas hoje tenho a sensação que, mesmo sem nós, as coisas não vão parar", diz Telma. No BI do Movimento Unidos pela Saúde, a data de expiração está em branco. Não se sabe por onde vai, mas sabe-se que não vai embora com "Correia de Campos. Há um ano que Telma e José Paixão andam a ler notícias sobre saúde. Controlam ao minuto as ambulâncias do INEM que passam e param em Anadia. Receberam na terra todos os políticos e mais alguns jornalistas. Fizeram directos na TV. Alimentaram notícias. E viram Correia de Campos cair. Agora, do alto das suas 15 manifestações, vão medir o pulso à nova ministra. Obras recentes do hospital custaram três milhões Fecho. Administração queixa-se de a unidade ter sido tratada como "um deserto" O Hospital da Anadia não parou no tempo. De 2004 a 2007 ganhou salas e equipamentos, modernizou serviços e alargou cuidados. Foram gastos três milhões de euros a desenvolver a unidade. "Tudo com verbas do PIDDAC e do Saúde XXI, tudo aprovado centralmente, tudo seguindo os critérios técnicos", lembra o presidente do conselho de administração, José Afonso. Por isso, não foi propriamente de braços abertos que os profissionais receberam a notícia de que os critérios tinham mudado e perderiam a urgência. "A reforma até faz sentido, mas não assim, com a tutela a referir-se a nós como se aqui fosse o deserto, como se aqui não houvesse nada. Ainda não consegui digerir isto tudo. Parece que não acertámos em nada do que fizemos nestes anos", acrescenta o administrador, lamentado "a politização com que o assunto foi tratado". Os corredores da urgência da Anadia, vazios à espera do resultado da providência cautelar, têm todos os equipamentos que um serviço de urgência básico deve ter. Tem desfibrilhadores, uma sala de observação, outra de emergência e até um espaço para as crianças não estarem misturadas com os adultos. Os médicos tiveram formação em suporte imediato de vida. E Anadia foi o primeiro hospital de nível 1 a instalar a triagem de Manchester. O único requisito que faltava era haver dois clínicos em permanência durante toda a noite. Mas as verbas para este ano já contemplavam um reforço. Apesar de José Afonso admitir dificuldades em contratar mais profissionais sempre houve, apesar de Coimbra estar ali a 40 minutos de distância. "Sem incentivos, é difícil aliciar mais médicos". "Claro que não podemos fazer cirurgia cardiotorácica. Mas há muitos casos que podiam resolver-se aqui". Contudo, os doentes referenciados para a unidade são cada vez menos. E, com a forma como o processo foi conduzido", José Afonso e os seus médicos sentem que o seu trabalho de anos foi posto em causa.